Porque esta carta foi escrita em 24/08 do ano passado e porque eu estava no meu inferno astral. E porque eu estou no meu inferno astral novamente.
E coincidência ou não, uma conversa me fez lembrar dela, um ano depois.
Uma vez, há muito tempo, eu era uma criança. E esperneava, gritava, e fazia escandalozinhos porque, para mim, era essa a forma de conseguir atenção. E sempre funcionou. Uma vez, há muito tempo, eu sofria com isso tudo. Uma vez, há muito tempo, eu sofria de um mal chamado carência (e ainda sofro). Porque, "hei mãe, eu tenho uma guitarra elétrica". E nem era isso que eu queria. Eu só queria um eu te amo, assim, bem grandão. E depois um abraço quente e comprido, com cheiro de mãe. E aconchego. Era só isso. Uma vez, há muito tempo, eu me senti abandonada. E os meus brinquedos não falavam comigo. Era eu quem falava com eles. E falava sozinha, e respondia em voz alta, pra mim mesma. Sozinha. Uma vez, há muito tempo, eu sonhei ser uma estrela. E eu até fui. A estrela mais bonita e sem platéia do mundo. Mas eu fui. E eu queria muito dizer, uma vez, há muito tempo, assim, bem devagar: "Mãe, eu amo você. E você, me ama também? E mãe, o pai na verdade, falou tudo da boca pra fora né? Ele só tava nervoso, né, mãe?" Mas eu não disse. Mas mãe, você sabe. Eu já te dei flores bem bonitas com cartõezinhos e dizeres também bonitos, aproveitando a minha descarada intimidade com as palavras. E você sabe, mãe, que eu não consegui ser uma mocinha bem comportada, com cara lavada e óculos transparente. E nem nunca consegui usar um vestidinho chita, com sapatos pretos e meia soquete branca. E aquele cabelo sedoso e bem comprido e escovado, eu também não consegui mãe. Eu cortei, bem curtinho, pra realçar meus olhos, que, eu acho, são bonitos. E eu cortei, porque sabe mãe, eu acho tão bonito. E o meu pescoço branco, ele fica tão bem quando à mostra, desnudo. E a minha boca parece maior, mais bonita, e os lábios fazem mais desenhos. Uma vez, há muito tempo, eu queria que você tivesse me contado umas loucuras aí. Dessas que a gente faz na vida. E eu te contaria umas minhas também. Eu queria mãe, que uma vez, pelo menos, você pegasse seu salário todinho todinho, e fizesse uma viagem curta, mas sozinha. Ou que fosse a um salão de beleza, e cuidasse dos seus pés, das suas mãos e do cabelo. E do rosto também. Que fizesse uma maquiagem suave, que realçasse os teus olhos, que são bonitos também. Eu queria mãe, que pelo menos uma vez no mês, você dormisse tranqüilamente e perdesse a hora do trabalho. E desse de ombros, assim, e dissesse: "Hoje eu não vou". Um dia mãe, eu quis dividir com você. Mas meu Deus do céu, como é difícil. Eu quis muito que você acreditasse em mim, um dia. Acreditasse na minha sensibilidade e na minha força. Queria que você olhasse pra mim, e dissesse: "Vai. Mas vai com tudo. Eu tô aqui, amando você." Eu queria que você passasse as costas da mão no meu rosto e dissesse que eu tenho um jeito de sorrir que é só meu. E que é delicioso. Eu queria que você dissesse que eu sou a melhor atriz do mundo inteiro, e que é a minha maior fã. E que eu sou engraçada mesmo, que as pessoas têm razão quando dizem. E queria dizer pra você o quanto eu tenho amado. E eu queria que você dissesse que, se eu estou feliz, você está mais. E o que eu mais quero, mãe, de presente de aniversário, que logo vem aí, é limpar tudo isso. Eu só quero aceitar, aqui dentro de mim, que foi o seu melhor e que, se não foi a melhor forma, não deve ter sido a pior. Afinal de contas, eu trabalho, tenho meu dinheirinho pouco, nunca roubei, não tentei me matar, e tenho um bom coração. E tenho sonhos. E eu não quero mais fazer escândalos pra chamar a atenção. Nem quero mais sofrer do mal chamado carência (a excessiva). Tampouco quero que tenham pena de mim e me passem a mão na cabeça. Eu quero jogar os meus dramas no chão, e pisá-los. E já chega, já tá bom assim, eu já sofri bem até aqui. Não porque você quis, mas porque eu permiti. E tem mais mãe. Eu amo você. E estou aqui, tentando ser feliz. Há pelo menos 25 anos. Agora mãe, com licença. Eu vou ali, tomar um ar.
A carta de extermínio ( ou a tentativa de )
Postado por A Libélula
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8 comentários:
Será que se eu comentar, ele também vai ser deletado?
:P
Melhor não falar nada a propósito do que escreveste, seria em vão :P
Lis
Uma deletadora compulsiva de comments!!!!
Flor, viu que meu blog sumiu?? Eu não consigo abrir desde ontem...
No dia de hoje, lendo você, eu fui assaltado por pensamentos que me transportaram para um passado não muito distante. Eu não escrevi carta alguma para a minha mãe, o que foi um erro, antes tivesse anotado o meu anseio, mesmo que as atitudes já fossem bem esclarecedoras. Hoje você me fez recobrar de uma dívida antiga, já me falta ciência para saber julgar quem é credor e devedor, é um cenário de obrigações mútuas, que jamais serão abonadas ou quitadas, porque eu estou aqui, mas ela já se foi...
No dia de hoje, que fui tragado ao saudosismo laudatório, só me resta, desde já, esperar o meu sono chegar, dormir com a culpa e acordar fingindo que a noite lavou os erros. Enquanto isso, tento manter minha calçada limpa, o jardim cuidado, a fachada pintada... Mas ainda não posso convidar ninguém para entrar. Te adoro Flor.
Oi minha linda, eu não recebi o teu e-mail, você pode mandar para ismael@brasilsite.com.br
Bjus
Isma
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